ETERNA É A SUA MISERICÓRDIA

ETERNA É A SUA MISERICÓRDIA

POSTADO EM 06 de Maio de 2016


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O Cardeal Walter Kasper, doutor em Teologia Dogmática, e presidente emérito do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em sua obra “A Misericórdia, condição fundamental do Evangelho e chave da vida Cristã”, no capítulo V apresenta reflexões sistemáticas sobre a misericórdia divina. Apresentarei a seguir as principais ideias deste capítulo.

A misericórdia como principal atributo de Deus

Suas reflexões relacionam a teologia helenística e a teologia bíblica, e alguns apontamentos da teologia moderna, para nos ajudar na compreensão que devemos ter  de Deus como  misericordioso e justo. Ele parte do texto do bíblico “Eu sou aquele que sou” de Êxodo 3,14, onde Deus se revela a Moisés na sarça em chamas, afirmando que a compreensão em hebraico do verbo “ser”, esta numa perspectiva dinâmica, “estar aí” com e para os outros, “Deus está junto de vós e caminha convosco”. Já, a interpretação grega, trás mais o sentido de existência “eu sou aquele que existe”. Essa segunda compreensão se desenvolveu muito mais na teologia ocidental, chegando ao patamar clássico de São Tomas de Aquino, que elaborou a teologia do próprio “ser de Deus”, como imanência (está presente em todas as coisas) e transcendência (tudo determina). A interpretação hebraica compreendeu essa revelação como um atributo universal, como benção para todos os povos, e a interpretação grega, que interpretou como o termo “ser”, por se tratar do conceito mais abrangente que possuíam, para designar uma divindade que tudo determina. Assim, as duas interpretações compreenderam esta revelação como aquilo que é o mais precioso que possuíam, a justiça de Deus possui em sua raiz a amor, a misericórdia. A misericórdia é organizadora dos atributos de Deus. Deus é simples, as diferenças dos atributos são para nossa compreensão.


  • A misericórdia como espelho da trindade

“Deus é amor” (1Jo 4, 8.16), e o compreendemos por analogia ao amor humano, que se doa e se autoconsome e nisso se autorrealiza, na alteridade e na diferença, diante disso é possível entender a doutrina da Trindade, de Deus uno e trino, vida e amor. Se Deus é autocomunicação em si de e de si, sua revelação é misericórdia e graça, não um devir.

O Pai só pode comunicar sua divindade ao Filho, e este ao Espírito, na medida em que se fecha na sua própria infinitude e deixa em Si espaço para outro. Este esvaziamento de Deus é condição sem a qual Ele, que é infinito, dá lugar à Criação. A encarnação de Deus em Jesus com a morte de cruz é o ponto culminante e insuperável da autorrevelação de Deus no seu autorrecolhimento trinitário. O auto esvaziamento de Deus é revelação de sua onipotência no amor. Esse esvaziamento de Deus nos permite que debrucemos sobre o seu coração e nos acolhe, no Espírito Santo, junto ao e no seu coração, obsequiando-nos uma maior proximidade: “se alguém Me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o Pai o amará, e nós viremos a ele e nela faremos morada” (Jo 14,23). A mística trinitária é experimentar na vida, como Cristo, o abandono, mas também mergulhar em Sua comunhão e intimidade: “Ó meu Deus, Trindade a quem adoro! Ajuda-me a esquecer-me totalmente de mim para me estabelecer em Ti, imóvel e tranquila como se minha alma vivesse já na eternidade. Que nada possa alterar a minha paz, nem apartar-me de Ti, ó meu Deus imutável, mas que cada momento de minha vida me submerja mais profundamente no teu divino mistério. Pacifica a minha alma, faz dela o teu céu, a tua morada predileta, o lugar do teu descanso” (beata Isabel da Trindade, carmelita do século XIX).

  •  A misericórdia divina: origem e meta dos caminhos de Deus

Sendo a misericórdia o principal atributo de Deus, é sob o sinal da misericórdia que se desenvolve toda história da salvação. E, em Jesus Cristo, desde sempre, predestinados ao amor, muito embora se considere o livre arbítrio. A misericórdia de Deus é o pressuposto original e o fundamento tanto da criação como de toda história da salvação. Assim, tudo depende da bondade de Deus. A doutrina da predestinação, que causou em muitos o medo do inferno, é bem compreendida por Santo Ambrósio, quando pergunta: “Como Cristo vai condenar, como juiz do universo, quase todos aqueles por quem entregou a vida na cruz para nos salvar?”. Ou ainda, Santo Anselmo, que afirma que “a misericórdia de Deus não responde as nossas obras, mas unicamente a Si mesmo e à sua bondade”.


  • A vontade salvífica universal de Deus

Segundo Kant, a pergunta “o que podemos esperar?”, recapitula todas as perguntas humanas. E, a reposta da fé cristã é de que nossa vida não se extinguirá no final: o amor de Deus, que nos deu seu Filho é definitivo. Porém, isso não cabe na simples expressão de que “não se preocupe, tudo ira acabar bem”. O amor divino procura ser retribuído, mas pode ser ignorado e recusado pelos homens, portanto a nossa decisão existencial é de vida ou morte.

Nem na Escritura, nem na Tradição encontramos uma resposta unânime sobre o assunto, é uma reflexão complexa, por exemplo, se por um lado, Jesus Cristo será tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 27 s), por outro lado, “haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8, 12). Porém, não nos foi revelada a condenação eterna de nenhuma pessoa, pois, o “não” da recusa do ser humano, jamais é comparada ao “sim”, incondicional de Deus ao ser humano. Mas, é inerente a misericórdia não ultrapassar a liberdade humana: “Deus aconselha, mas não obriga” (Irineu de Lion), ou Santo Agostinho, “Aquele que criou sem ti não te justificará sem ti”, ou Edith Stein, “podemos esperar na salvação de todos, mas, não nos é dado estar efetivamente seguros dela”.


  • O Sagrado Coração de Jesus como revelação da misericórdia divina

A revelação da misericórdia divina tem seu lugar concreto em Jesus de Nazaré. N’Ele Deus escolheu-nos por toda a eternidade: “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9), “Convinha, por isso, que em tudo se tornasse semelhante aos irmãos, para ser em relação a Deus, sumo sacerdote misericordioso e fiel, para expiar os pecados do povo.” (Hb 2, 17).

O culto ao Sagrado Coração de Jesus possui raízes bíblicas: “Derramarei sobre a casa de Davi e sobre todo habitante de Jerusalém um espírito de graça e de súplica, e eles olharão para mim a respeito daquele que eles transpassaram, eles o lamentarão como se lamenta um filho único; eles o chorarão como se chora sobre o primogênito” (Zc 12,10), que o Evangelho de João retoma: “olharão para aquele que traspassaram” (Jo 19,37). O coração traspassado de Jesus simboliza a humanidade de Jesus, que morreu por nós. São Boaventura diz: “através da ferida visível, vemos a ferida do amor invisível”. Os padres da Igreja remetem para a afirmação de Jesus de que “hão de correr do seu coração rios de água viva” (Jo 7,38), e mais “um dos soldados traspassou-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,34). Santo Agostinho interpretou da seguinte forma: “com isto abriu-se a porta da vida da qual fluem os sacramentos da Igreja, sem os quais não se pode alcançar vida”. Neste entendimento, a Igreja, corpo de Cristo, deve participar do sofrimento do mundo, padecê-lo na própria carne e purifica-lo, tendo a certeza de que nada, nem a vida, nem a morte, nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo (cf. Rm 8, 35-39).


  • O Deus que, na sua misericórdia, sofre com aqueles que sofrem

A Bíblia não conhece um Deus que reina apaticamente na glória e na beatitude de seu trono sobre um mundo cheio de horrores: “Ele estando na forma de Deus não usou de seu direito de ser tratado como Deus” (Fl 2,6). A encíclica do Papa Pio XI, Haurietis Acquas (1956), afirma que os afetos e os sofrimentos da natureza humana de Jesus são os mesmos afetos e sofrimentos da Pessoa divina. Em Jesus Cristo, Deus fez-Se homem, a fim de que não falte à misericórdia divina o verdadeiro cossofrimento. A compaixão de Deus não é expressão de sua debilidade ou de sua impotência, mas, muito pelo contrário, é expressão de sua onipotência. É o amor soberano de Deus que O leva à encarnação e a rebaixar-se à condição de servo. Deixar-se afetar pelo sofrimento sem ficar submetido a ele faz parte de sua onipotência, é precisamente por ser mais forte que a morte, que ele “morrendo destruiu nossa morte”.

“O homem tem um valor tão grande para Deus que Deus Se fez homem para Se poder compadecer com o homem.. Por isso, em cada sofrimento humano entrou alguém que compartilha o sofrer e o padecer, daí se difunde em cada sofrimento a com-solatio, o consolo do amor participado de Deus, e assim aparece a estrela da esperança” (Bento XVI, Spe Salvi).


  • A esperança na misericórdia em face do sofrimento dos inocentes

Como pode Deus permitir o sofrimento humano? Todas as tentativas de teodiceia (justificar Deus em face do sofrimento e do mal existente no mundo) faltam tanto ao respeito devido a Deus e ao mistério insondável de sua vontade como ao respeito devido ao mistério do ser humano e de seu sofrimento. Porém, se se busca um sentido à existência humana e ao mundo, faz-se necessário uma perspectiva de esperança de reconciliação entre a natureza e a liberdade humanas. A Bíblia veterotestamentária narra está esperança na ressurreição dos mortos (2Mac 7). Mesmo no livro de Jó, a forma de se relacionar com Deus é sustentada pela esperança: “eu seu que me redentor vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra; e depois de minha pele se desprender da carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo O verei, os meus olhos e não outros O hão de contemplar! As minhas entranhas consomem-se dentro de mim” (Jó 19, 25-27).

Os Salmos apresentam grande número de queixas e lamentações, porém nunca terminam em desespero, e sim, na confiança de que Deus está perto de quem ora. Assim, como Jesus diz agonizante: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23, 46). Assim é a vida cristã: “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28).

Esta esperança não se esgota neste mundo e nesta vida, estamos a caminho, vivemos como na vigília da noite da Páscoa, acendemos nossas velas na luz de Cristo, para que ela brilhe, levando-nos a uma certeza e esperança que produz paz interior. Essa esperança lança luz e confere força já, aqui e agora. A esperança é uma força ativa e ativadora, ela nos faz experimentar a misericórdia divina e nos convertermos em testemunhas dessa mesma misericórdia.



Pe. Nei de Oliveira Preto

06/05/2016

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